terça-feira, 7 de abril de 2015

Contos da Taverna - As Crianças Desaparecidas (Parte III)

A manhã chegou com uma brisa fresca por entre as grandes árvores. Neldo Samard levantara do leito improvisado ao lado de um grosso tronco de carvalho caído. Seu manto de pele e couro serviu muito bem durante a noite para o manter aquecido. Era a oitava noite seguida em que dormira longe de um abrigo decente.

Pensou nas moedas de ouro e tentou consolar a si mesmo. Noites mal dormidas em troca de uma quantia generosa de ouro.

Contudo, nada ganharia se não encontrasse as crianças ou o responsável pelo desaparecimento delas. Tudo o que sabia era que o oeste era improvável para o paradeiro dos garotos.

"É impossível de caminhar ao oeste da Aldeia", disse Loyer. "Vá para qualquer outra direção", continuou.

Neldo, num impulso tomado levando em conta apenas a sua própria intuição, seguiu para o oeste. A mata cerrada e densa era um lugar perfeito para desaparecer com crianças sem muito alarde.

No entanto, após tantos dias sem uma única pista, começou a desanimar-se. Chegou a encontrar restos de uma fogueira e um pequeno manto sujo de sangue. Poderia muito bem ser o que procurava, como também era possível ser o que sobrou de uma noite de caça de qualquer homem.

Preferiu não dar ouvidos à voz que escarnava-o ao declarar que fracassou. Levantou-se, puxou o seu cavalo, e prosseguiu pela densa floresta. O terreno irregular tornara-se um obstáculo difícil para uma montaria segura, e Neldo concluiu ser melhor continuar a busca puxando o corcel.

Subitamente, os grossos troncos de carvalho e tílias cessaram e Neldo viu à sua frente uma pouco de terra batida, margeando um rio caudaloso. Do outro lado, após alguns metros, a imensa e impetuosa floresta recomeçava. Buscou o seu corno em alguma sacola preso ao cavalo. Sentira sede desde a última noite.

Mas ele não conseguiu completar o seu desejo. O que aconteceu fora rápido: sentiu seu crânio doer, como se fosse esmagado por uma rocha às encostas do mar revolto das ilhas do sul. Com o golpe, seu corpo fora arremessado violentamente ao chão e não conseguiu pensar em nada, além da dor que a pancada da cabeça ao chão causou-lhe.

Quase inconsciente, teve forças para voltar os olhos para os céus, mas a alvorada já tinha dado lugar ao sol quente quase no centro da imensidão azul e Neldo ficou cego por um instante.

Ouviu vozes. Não conseguiu entender o que diziam. Pareciam muitos falando ao mesmo tempo, como se discutissem. Sentiu um impacto nas pernas e outro, desta vez no flanco. Alguém tentou colocá-lo de pé, ou talvez sentado, mas não fora forte o suficiente e Neldo sentiu um corpo leve caindo sobre si. Mais vozes discutiram e desta vez Neldo pôde compreender que aquelas vozes agudas só poderiam ser de crianças.

- Quem é você? - questionou alguém, mas Neldo ainda estava se recuperando dos golpes em sua cabeça. A visão turva foi, aos poucos, desanuviando e ele começou a enxergar silhuetas de pé seu redor, como se estudassem atentamente um corpo moribundo ao chão.

- Ele desmaiou - a voz era de uma menina.

- Ele está morto! - gritou uma voz esganiçada.

- Ele está vivo - disse o primeiro.

Neldo agora conseguia enxergar. Meninos e meninas, talvez o mais velho dentre aqueles seis ou sete garotos não tivesse nem catorze anos.

- Q-Quem são vocês? - ele quis saber.

- Perguntamos primeiro - o garoto tinha um cabelo vermelho vivo, como se a cabeça estivesse pegando fogo.

- Deixem-me levantar e eu contarei quem sou.

Logo, um garoto alto e corpulento ajudou-o a sentar-se. Só então Neldo notou o aços desformes nas mãos das crianças, como se fossem espadas forjadas pelas mãos de um ferreiro bêbado e estúpido. O garoto ruivo era aterrorizantemente familiar. Não precisava mais de respostas sobre a identidade daquelas agressores. A semelhança já confessara.

- Você é filho de Loyer - disse. - E essas outras crianças devem ser aquelas que a Tribo inteira procura.

Todos se entreolharam, estupefatos. Não deveria ser diferentes. A Tribo era distante daquele lugar, e um desconhecido conhecê-los foi mesmo um choque. Mas Neldo não entendia ainda por que estavam ali, aparentemente sem nenhum impedimento para voltarem para casa.

- Não voltaremos, se é isso o que veio fazer - cuspiu o ruivo.

- Seus pais pensam que estão mortos ou ainda pior - informou Neldo. - Eles estão preocupados.

- E ansiosos para nos surrar mais uma vez.

Foi então que Neldo olhou em volta e se sentiu chocado. Cada criança trazia consigo cortes profundos nos braços, no rosto e nas pernas. Talvez fosse dos duros dias na mata, mas com aquela declaração, compreendeu tudo de uma vez.

Tudo o que pensou durante os seus últimos dias e noites caíram por terra. Não havia assassino, nem violentadores de meninas, muito menos vendedor de escravos. Só existia pais duros. Uma aldeia inteira de homens cruéis, tal como pensou assim que pisara os pés na tribo.

E então, Neldo explicou o que fazia ali e os garotos lhe contaram o que era preciso saber. Espancamentos foram só o começo da história, que envolvia também uma espécie de abuso de membros nas festas de colheita. Quando a situação se tornou insustentável para aqueles garotos, resolveram fugir para o mais distante possível e aos poucos conseguiam resgatar mais crianças durante as madrugadas.

- Não podemos voltar - disse Rubel, o filho de Loyer. - Não podemos!

Neldo consentiu.

- E não voltarão.

Ele teve uma ideia. Loyer e os outros ainda tinham esperança de encontrá-los. Talvez nunca parassem de procurá-los. A não ser que tivesse certeza de que seria impossível achar algum deles. E só existia uma maneira de fazê-los esquecerem as crianças.

- Eles cessarão as buscas - garantiu -, mas preciso de algum pertence que possa identificar algum de vocês.

Pensaram por um instante.

- Como você me reconheceu, se nunca nos vimos? - indagou Rubel, curioso.

A resposta era simples.

- Percorri metade do reino por vinte anos, e nunca vi cabelos tão vermelhos e brilhantes quanto o de seu pai - fez uma pausa. - Até te encontrar.

Rubel arqueou as sobrancelhas de sobressalto. Rapidamente puxou uma pequena faca da cintura e habilmente cortou uma grossa mecha dos cabelos cacheados.

"Garoto esperto", pensou Neldo.

- E o que fará? - quis saber o garoto. Neldo apenas o fez saber que nunca mais ouviriam falar nos próprios pais.

Com o cabelo posto em uma sacola ao flanco do seu corcel, Neldo partiu. Percorreu durante horas pela floresta até encontrar o animal do tamanho correto. Seria um crime real, mas precisou matá-lo.

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