quarta-feira, 9 de julho de 2014

Contos da Taverna - Os Saqueadores da Estrada

Os irmãos Edick e Hundor Bruchet caminharam em seus cavalos desde o amanhecer. Estavam a três dias trotando em direção ao sul. Sob o céu rosado do fim da tarde, eles se dirigiam lentamente à procura de uma estalagem de médio a grande porte. Além de movimentada, teria que ser dispendiosa. A sobrevivência dos irmãos dependia disto. Afinal, ninguém saqueia um estabelecimento falido, pelo contrário, é necessário roubar quem tem muito ouro guardado nos baús.

Desde a saída deles do extremo norte, saquearam quatro estalagens, além de duas caravanas sem proteção pela estrada. Era incomum encontrar comerciantes em viagem sem homens armados protegendo o ouro e a carga, mas era possível ainda encontrar alguns amantes da sorte pelas estradas desertas do reino de Omério.

Edick levantou a cabeça e viu o caminho se transformar numa descida suave num campo fechado, e a única coisa que ele conseguia enxergar além da estrada de cascalhos eram as densas matas margeando o caminho. Coçou o seu queixo, fazendo-se ouvir o farfalhar de seus dedos grossos esfregando sua barba por fazer. Hundor era mais corpulento, e seu cavalo tinha mesmo que ser forte para suportar um homem daquele tamanho montado em seu lombo por longos três dias.

Ao fim da inclinação do terreno, os dois irmãos se defrontaram com uma bifurcação na estrada. O objetivo dos dois saqueadores era chegar à Baía Vermelha, o ponto mais ao sul de Omério. No entanto, aquelas duas vias exigiriam dos dois uma decisão que poderia alterar o rumo a partir dali.


Foi quando ouviram um som familiar vindo da mata. Um baque surdo atrás do outro não deixava dúvidas de que alguém se aproximava. Então, sem muita surpresa, um garoto surgiu por detrás de uma árvore e fitou os irmãos Bruchet.

- Olá, viajantes - saudou o garoto.

Edick e Hundor não disseram nada. O menor deles olhou atentamente para o jovem que acabara de desembocar na estrada. Não deveria ter mais de treze ou catorze anos. Os olhos arrebitados e brilhantes eram como o de alguém cheio de energia e alegria.

- Sabe qual caminho podemos pegar para chegar na Baía Vermelha? - Edick perguntou.

O garoto disse "sim" com um gesto de cabeça.

- Vocês devem pegar a direita e continuar seguindo direto.

Edick agradeceu. Mas seus planos e dúvidas não parariam naquela pergunta.

- Será que há alguma hospedaria por perto? Está escurecendo - riu escarnecidamente, pensando no que falaria em seguida -, e temos medo de ladrões.

O menino sorriu. O riso era ingênuo, como era de esperar de uma criança.

- Por sorte - respondeu ele -, por essas bandas não existem muitos ladrões. Em menos de dois quilômetros você poderá encontrar uma hospedaria muito boa. As camas são macias e o senhor Ducko sabe cozinhar coelhos como ninguém.

Edick agradeceu mais uma vez, e enquanto se preparava para prosseguir notou uma pequena lâmina presa à cintura do garoto.

- É uma bela espada - elogiou. O menino sorriu. - Ela tem nome?

- Piedade - ele disse, indiferente.

Só um inocente colocaria um nome como aquele numa arma. Afinal, ninguém que desembainhasse uma espada para matar outro teria piedade. Talvez possuísse medo de matar, mas nunca piedade.

Fez o seu cavalo pegar o caminho da direita. Hundor veio logo atrás, sem pronunciar uma única palavra. Edick olhou por sobre os ombros e viu o garoto sorridente e gentil atravessando a estrada e se embrenhando na mata do lado contrário ao que surgira.

Continuaram em suas montarias até que, no meio das árvores, um pequeno campo aberto despontou à direita do caminho e um pouco afastado da estrada estava a hospedaria que o garoto mencionou. Uma fumaça saía da chaminé e Edick pensou em conseguir um bom coelho assado juntamente com o ouro que conseguiria com o tal Ducko.

Prenderam os seus cavalos e entraram. No salão comum não havia ninguém além de um velho sentado atrás de um balcão de madeira. Edick se perguntou se aquela estalagem teria mesmo alguma pequena fortuna para ele e seu irmão caçula. Aproximaram-se do balcão e o velho sorriu como se estivesse revendo velhos conhecidos.

- Olá, senhores! Meu nome é Ducko - ele parecia animado. - Chegaram bem em tempo de comerem uma lebre assada.

Edick sentiu a água tomando conta da sua boca. Hundor pôs a mão no punho da espada, mas Edick meneou a cabeça. Não era o momento ainda. Era preciso saber se havia hóspedes nos quartos, principalmente porque algum deles poderia ser um cavaleiro em viagem, o que poderia arruinar os planos. Além disso estava sentindo o seu estômago dançar por baixo da pele.

Entretanto, ele não teve muito tempo para pensar no que fazer primeiro. Quando ainda se preparava para responder ao velho Ducko, ouviu um gemido de dor e confusão vindo de Hundor, e quando olhou para o lado já era tarde. Seu irmão grandalhão estava desabando, seu sangue jogando de suas costas como uma cascata. Atrás dele, com uma espada empunhada estava o garoto da estrada, que levantou sua arma e a enfiou mais uma vez em Hundor, desta vez atingindo-o pela frente, abrindo a sua barriga de um lado a outro.

Edick recuperou-se ligeiramente e tentou puxar a espada da cintura, mas uma mão forte o segurou pela cabeça, impedindo-o de andar. Sentiu que era a mão esguia do velho que o segurara, e Ducko segurava um pano úmido ao nível do nariz de Edick. Ele tentou respirar, mas o pano, que tinha um odor forte que o fez lembrar dos pântanos da Vila Verde, não permitiu.

Debateu-se para desvencilhar-se, mas o homem que o segurou por trás do balcão era surpreendemente forte para o corpo franzino. Além disto, a respiração debilitada o deixou fraco e ele sentiu-se desfalecendo à medida em que ia escorregando as costas balcão abaixo, até estar sentado no chão. Tentou se mover, mas o corpo ardia por dentro, como se existisse brasas de fogo dentro de si.

Ducko deu a volta no balcão e olhou para o garoto.

- Tem certeza de que eles são saqueadores, Guil?

O menino confirmou. O olhar feliz da estrada tinha dado lugar a olhos estreitos e sombrios, como se pertencessem a alguém muito mais velho, capaz de matar a própria família por diversão. Parecia estar sorrindo, mas não estava, de fato.

- Eu os reconheço de longe - disse ele, levando para próximo de Edick a sua espada.

O único irmão Bruchet ainda vivo se esforçou para emitir algum som.

- Por favor - a força que ele usou para falar era angustiante.

O menino chamado Guil apenas levou a ponta da sua espada para o pescoço de Edick. Empurrou-a lentamente como se saboreasse cada centímetro penetrado na pele do ladrão. A garganta de Edick flamejou, e quando tentou puxou um último suspiro, pôde sentir seu sangue quente habitando o local onde deveria ter apenas ar.

O menino sorriu mais uma vez e olhou para a sua espada, enquanto via Edick Bruchet ouvir suas últimas palavras.

- Esta é a única piedade que ladrões merecem.

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